O TRÂNSITO DE BRASÍLIA ATRAPALHA
A ESTAFANTE VIDA DOS ASPONES
Desde 21 de abril de 1960, a precisos 19 dias de completar 55 anos exatos, o Rio de Janeiro deixava de ser a capital federal e o reino da flor da malandragem brasileira. Com a inauguração de Brasília, milhares de funcionários públicos, autarquias e empresas foram transferidos - do Rio e de todos os cantos do país - para o novo centro do poder e paraíso dos malandros que comem e dormem no Planalto Central do Brasil.
E então, assim se justifica o trânsito, tão arrastado quanto apressado e tão apressado quanto intolerante nas largas avenidas que ligam o Plano Piloto às cidades-satélites e ao entorno do Distrito Federal: são milhares de funcionários públicos, afora os terceirizados, andando de cima para baixo e em todas as direções que levem a uma das bocas-ricas do governo, de segundas-feiras a sextas até o meio-dia, na mais arregaçada das hipóteses.
E se é assim que se justifica o embolamento do trânsito, da balbúrdia do ir e vir de Brasília, será assim que se há de explicar essa barafunda. E eu já lhes digo como é que funciona.
Os aspones, aos milhares, saem dos seus apartamentos funcionais, suas casa no Lago, quase todos à mesma hora: coisa entre sete e meia e nove horas da manhã. Pegam seus carros, entulham as auto-pistas com seus bólidos, dirigem em franca direção ofensiva, como se donos da rua, da cidade, do carro e do tempo dos outros eles fossem.
Trocam de mão sem dar sinal, ou trocam de direção até mesmo porque deram sinal e acham que isso é tudo; invadem o espaço dos outros motoristas, gesticulam, aceleram, metem por cima e, enfim, com o carteiraço de sócios do poder estabelecido, chegam aos seus gabinetes, antes das nove horas de mais um estafante dia inútil.
Nos seus respectivos ministérios os atarefados servidores tiram o casaco, sentam-se as suas mesa de chefete, pedem um cafezinho, telefonam para outro aspone, marcam um almoço-executivo, examinam a agenda do dia com a secretária-troglodita, eis que ela fala três idiomas; vestem o casaco, saem apressados rumo à garagem onde cada um retoma a direção do seu carro e voltam - todos num só movimento coletivo abstrato - a atrapalhar a mobilidade urbana brasiliense.
O deslocamento veicular é imprescindível, posto que chegar atrasado a um compromisso de terçar talheres, não é admissível na República dos Calamares. Se isso engarrafa e perturba o trânsito, azar do Valdemar.
Bolas, Brasília só é Brasília, só é capital federal por que tem funcionários públicos assim, sem carreira que andam às carreiras, à cata de fazer o que nunca fizeram e nem sabem fazer na vida.
Almoçam, comem bem e muito, mas bebem pouco já que almoço não é happy hour que sempre fica para os fins de tarde e começo de noites sempre crianças no Planalto Central do País.
Falados e comidos, despedem-se e saem às pressas em seus automóveis que não buzinam, mas destrambelham o trânsito.
Por volta de três e meia da tarde, chegam de novo aos seus gabinetes, tiram o casaco - agem sempre em bloco, de forma compacta, sistemática, organizada e idêntica, como se um fosse por todos e todos fossem por um - tomam um cafezinho; telefonam para outro espécimen dessa nova elite cuja praia é o trabalho e marcam, agora sim, o happy hour. Eles têm muito que conversar.
Chamam a secretária-executiva, revisam a agenda para amanhã. Vestem o casaco e saem, às pressas, rumo à garagem - ufa! que correria... - pegam suas máquinas administrativas de quatro rodas e conturbam uma vez mais o trânsito. Eles têm pressa, ninguém pode esperar e nem fazer-se esperar.
Aí, engarrafam o trânsito, mudam de mão mas não perdem o rumo, se atravessam, podam os carros mais próximos de motoristas mais lerdos, sua direção é ofensiva, gesticulam, aceleram, metem por cima... E, enfim, chegam ao barzinho reservado, lusco-fusco e agradável das agradáveis e encobertas noites brasilienses - que ninguém é de ferro e ninguém pode esperar e nem fazer-se esperar.
Aí, a noite se vai. E o último compromisso inadiável de mais um dia inútil foi cumprido. Com a inconsciência do dever descumprido, vestem o casaco, as cuecas, as calças, as meias, os sapatos - sim, os sapatos e, devidamente recompostos, entram em seus carros e atrapalham o trânsito pela última vez naquele dia.
Chegam em casa, até que enfim. A mulher quer coisa, mas ele com um beijo carinhoso na face da rainha do seu lar, com um demorado suspiro declina do atentado ao pudor de mais uma noite caseira: - Pode ser amanhã, querida? O dia hoje foi estafante...
E vai tomar uma ducha. Dorme o sono dos justos. Às sete e meia já está de banho e café tomados, entra no carro e sai às pressas, atrapalhando uma vez mais o trânsito de Brasília. Antes de dar a primeira "podada" da manhã, ele diz de si para si mesmo: - Calma, bonitão. Calma. Hoje é sexta-feira, dia de expediente meia-boca.