De Roma
Cabeçalho: Como hoje nem é domingo, ao invés de rodapé temos cabeçalho. E como a preguiça domina, aqui vai um dos melhores textos – talvez o melhor – já escritos sobre a capital brasileira. E como Brasília está em todos os noticiosos, vale a pena ler de novo. Boa leitura.
Brasília, flor e bomba
ARTIGO - Cláudio Abramo
(O Estado de São Paulo, 21 de junho de 1959)
Brasília tem sido o tema preferido de dois setores da nação que se diferenciam menos por classificações políticas do que pela visão que cada qual deles tem do que deve ser este país. Um e outro promoveram a construção de uma cidade a entidade cujo significado vai além dos limites específicos de um empreendimento desta ordem.
Uns e outros, nos discursos, nos artigos, nas manifestações escritas ou orais, empregam em relação à futura capital uma terminologia cujo simbolismo é demasiado revelador para não ser preocupante.
De construção de cidade nova, com soluções atuais de urbanismo, travada de audaciosa concepção arquitetônica, tangida pelo arrojo, Brasília passou a constituir-se num mito; mito necessário, já que a grande massa dos brasileiros – acrescida dos filhos de imigrantes – carece de figuras e momentos suficientemente épicos para fustigar sua vontade de imaginação.
Brasília passou a ser defendida e atacada como se de suas estruturas metálicas corresse sangue, como se em suas rampas, asfalto, pedra, cimento e cal pulsassse vida. Tornou-se ela simultaneamente ser e abstração, objeto e entidade – solução e danação. Brasília, transfigurada, passa assim por cima dos seus criadores e dos seus adversários.
No debate nacional, no qual a ponderação do ataque e da defesa se alterna com o frenesi da defesa e do ataque, Brasília, de capital em estado embrionário, foi transmudada em forma pulsante e sensorial.
Mas afinal, de quoi s’agit’il? De que se trata? Brasília, afinal de contas, é apenas uma cidade que se constrói. Ser contra ela, nesta altura, é tão efetivo e válido quanto ser contra a existência da Lua.
Apontar os erros que orientam sua construção, fazer o rol do que se deixa de executar para executar Brasília constitui certamente uma comovente demonstração de interesse patriótico pelos problemas públicos – mas não passa, neste momento, de puro exercício acadêmico. Porque há uma coisa inelutável nisto tudo: desde que as forças interessadas na construção de Brasília não têm, pelo menos nesta quadra da vida nacional, nenhuma força efetiva e material, dinamicamente válida, pela frente, e desde que as forças contrárias à construção são obrigadas a uma oposição de mera opinião, a discussão sobre o prosseguimento das obras, em si, é estéril.
A quantidade e os recursos dos que enumeram as razões pelas quais são contrários a Brasília é tão grande quanto a quantidade e o recurso dos que perdem tempo igual a absolver a futura capital. Mas de qualquer maneira, é necessário colocar algumas perguntas que se situam no mesmo nível da exclamação da criança diante da invisível indumentária real: são perguntas elementares, que trazem a resposta da negação, mas por isso mesmo fundamentalmente necessárias.
Façamo-la, a primeira pergunta:
Afinal de contas, era tão necessário assim mudar a capital do Rio para o planalto goiano? Estava nas determinações dos legisladores do fim do século XIX. Mas muito está determinado e escrito, que não se cumpre nem se olha ou vê. Para decidir a questão, seria indispensável consultar sociólogos, urbanistas, especialistas em cálculos de trabalho – e não esquecer os psicólogos.
Era necessário construir Brasília tão depressa? Ninguém respondeu a esta interrogação de maneira satisfatória. O custo das obras aumenta com a rapidez ou a lentidão? Seriamente, ninguém parece ter feito esse cálculo para fins de esclarecimento. Gasta-se muito? Provavelmente sim.
Gastam-se bilhões; mas ninguém até hoje fez cálculo algum do que poderia ser feito com o que se despende em Brasília. Os governos anteriores não construíram Brasílias, mas também nada fizeram em seu lugar.
O governo deveria interromper as obras, porque a oposição é contrária? Contrária como, se lá encontramos, familiarmente instalado, um fiscal da oposição? Contra, sim, mas essa oposição se limita aos lampejos dos discursos e aos brilhantes editoriais.
Brasília adiantará de alguma coisa? Provavelmente sim; pelo menos existem ali 65 mil trabalhadores que ocupam terras e casas, que se casam e criam filhos. Tirá-los de lá será extremamente difícil – e não os tirar significa um problema que não exclui a aprovação de uma legislação especialíssima.
Brasília é longe? De quê? Do mar? Mas é perto do Amazonas, por exemplo, mais perto do que o Rio ou São Paulo o são.
Brasília é bela? É. No meio da planície, delicada e sensível, leve, projetada no futuro, Brasília revela-se como uma miragem: incompleta, embrionária, metade cidadela, metade alga, anêmona, ela parece pulsar – tem-se a impressão de que se pode estender a mão e colhê-la, fruto delicado, flor brasileira, pétala, pele de pêssego, pedra lapidada, elegante e inteligente abrigo do homem.
Por que, em primeiro lugar, colocar o problema de Brasília na base em que ele está sendo colocado, se, no fundo, jamais se discutiu, até hoje, com essa abundância de pormenores que são abundantes apenas para ocultar seu vazio, os problemas nacionais de fundo?
Veja-se, por exemplo, com que lamentável fatalidade, com que submissão catastrófica uma ponderável parcela da opinião pública se entrega, olhos fechados e mãos amarradas, às candidaturas, um de fita mexicana, outra de opereta vienense, sem que ninguém, por um minuto, pare para perguntar: mas afinal de contas, o que pensa, o que é, o que significa o Sr. Jânio Quadros (ou o marechal Lott)?
Não se discutem esses pormenores porque de um lado eles são inelutáveis e de outro não se possuem dados efetivos. Os dados à mão são circunstanciais ou irrelevantes. Num caso de alega boa administração, e uma esperteza erigida em qualidade, noutro um nacionalismo de extração heterogênea e duvidosa filiação. Na realidade, a opinião pública é chamada a manifestar-se apenas no dia da eleição.
Se fizéssemos um plebiscito entre a massa de trabalhadores, Brasília seria derrotada porque eles vêem nela apenas o vácuo feito daquilo de que eles necessitam e que não recebem. Mas a voz da grande massa de trabalhadores não conta porque não é transmissível.
Ficam portanto cingidos aos temas centrais das alegações contrárias que podem ser manifestadas.
Uma parcela esclarecida da opinião pública vê em Brasília o instrumento acelerador de um processo crítico cujas conseqüências serão trágicas e – o que é muito mais sombrio para ela – incontroláveis.
Outro argumento é o de que construir uma cidade nova neste momento constitui um ato de declarada irresponsabilidade; outro ainda é o fato de se cometerem ali, provavelmente, irregularidades (como o denuncia a insistência de uma parte da oposição em realizar um inquérito esclarecedor).
Que entusiastas, por sua vez, depositam nela todo o significado e todo o fulfillment de que a incapacidade governamental (do município à União) deste país torna sequiosos e sedentos os seus burocratas.Em suma, não se possuem dados efetivos para discutir o “caso Brasília” no plano racional porque: 1) as irregularidades, se existem, não bastam para condenar a idéia da nova capital. Antes, sanadas, elas a absolveriam. 2) Nunca é momento de gastar tanto dinheiro, a não ser em hospitais, escolas, pesquisas científicas e obras capazes de elevar efetivamente o nível de vida do povo.
Finalmente, o que falta ao Brasil é precisamente um momento sério; um momento no qual o brasileiro se mire no espelho e pergunte a si próprio: isto tudo está certo? Isto tudo tem sentido? Um momento, enfim, de crise incontrolável, de crise trágica, de abalo sísmico, acima dos homens e das coisas.
Só poderemos ser, portanto, a favor de Brasília, se ela traz consigo – como dizem seus adversários – todas essas conseqüências e problemas.
Somos a favor de Brasília no plano irracional. Como se é a favor de uma flor, de um animal ferido, de uma criança.