Marcelo Câmara
Fábula desmoralizante e corruptora
(Para se ler nu, em êxtase patriótico e jubiloso, desfraldada a bandeira nacional.)
Na última sexta-feira, dia 2 de outubro, o Rio de Janeiro carnavalizou-se. Ansiedade e catarse, alegria e samba, travestismo e delírio. A dinamarquesa Kopenhagen anunciava: o Brasil hospedaria os jogos olímpicos e paraolímpicos de 2016. A festa inundou zonas sul, norte, oeste, subúrbios, arrabaldes rurais.
Foguetes, cerveja, shows na Praia de Copacabana. Parecia que tínhamos governos honestos, de mínima e natural corrupção, em todos os níveis, que cumpriam compromissos ideológicos e programáticos do seus respectivos partidos políticos.
Podia-se até imaginar que estávamos numa democracia e vivíamos num país onde os indivíduos eram respeitados nos seus fundamentais direitos e comiam relativamente bem; se vestiam e tinham saúde, eram humanamente atendidos nas unidades de saúde e hospitais; estudavam em escolas decentes, iam e vinham no seu cotidiano sem assaltos, a salvo das balas perdidas e estupros; o esporte e o lazer eram generalizados; os direitos culturais estavam garantidos e eram amplamente exercidos; havia transportes públicos seguros e eficazes; trabalhavam dignamente; enfim as pessoas viviam e conviviam em paz, felizes. Sonhavam, criavam, produziam. Os serviços públicos eram públicos.
Naquela manhã, as edições dos jornais e revistas, os telejornais e a Internet não recuperavam as pautas dos últimos meses: as irregularidades de toda ordem, a lama pútrida que lambuzou todas as instituições públicas que planejaram, organizaram e realizaram os Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro em 2007.
Corrupção ativa, peculato, desvio de dinheiro público, incúria, prevaricação, furtos, formação de quadrilha, falsidade ideológica, superfaturamento de obras e serviços, que, quando prestados eram insuficientes ou criminosos, desadministração delituosa, total e epidêmica, malversação do dinheiro público em todos os níveis, em todos as etapas, em todos os ginásios, estádios, parques e arenas.
E vamos de providências, sindicâncias, auditorias, investigações, apurações, denúncias, inquéritos, indenizações, CPIs, ações públicas, processos administrativos, cíveis e criminais – tudo sem conclusão, sem responsabilidades, sem réus, sem culpados, sem condenações, sem detenções, sem cárceres ou encarcerados.
“Ninguém foi preso” – a frase mais publicada e anunciada no País, desde que somos “República”. Ou: “O processo concluiu que houve falhas, houve erros na aplicação das verbas, mas não se pode apontar culpados ou condenar pessoas responsáveis”.
Horas mais tarde ao anúncio, na madrugada de sábado, Marlene, uma empregada doméstica, dormitava e soluçava com o filho de um ano no colo, ardendo em febre, convulsivo, numa parada de ônibus sem ônibus, na zona sul, a mais rica, da cidade.
Voltava para casa para ver se algum vizinho, alguma alma generosa da favela onde vivia, salvaria a vida do menino. Isto porque, no hospital público, o melhor da cidade, onde havia sido atendida, após espera de três horas, “nada podia ser feito, pois além de não haver médico especialista de plantão, não havia dipirona, que estava em falta há quinze dias”. Fazer o que? Clamar a quem? Ao bispo? – indignava-se Marlene. Mas não sei onde ele dorme, pensou.
“Ao Papa? Roma está longe, nem sei como lá se chega. E o prefeito? Que fim levou? E o governador? Tá viajando. E o vereador? O deputado? O senador? Sei lá... Será que polícia resolve? Uma dipirona já aliviava o sofrimento... Dava pra amanhecer o dia. Porra! Não é fácil. Todo dia a gente escuta no rádio e vê na televisão: corrupção, roubo do dinheiro do povo... e o hospital não tem um frasco de dipirona...”
Marlene matutou e amaldiçoou. Um motorista de táxi levou-os, ela e o filho, até a entrada da comunidade. Eram quatro horas da manhã. Não se sabe o que aconteceu com Pedro, o menino em chamas e vômito, nos braços da empregada doméstica.
Mas as notícias são boas, são as melhores: com as Olimpíadas de 2016, além da auto-estima carioca dar um salto, o orgulho de ser brasileiro vai bater um recorde. Para a cidade do Rio de Janeiro, maravilhosa por natureza, será a redenção. Será a oportunidade, depois das olímpicas asneiras de se lhe tirar a condição de capital federal e de se lhe impor a fusão entre o fictício e falecido Estado da Guanabara e o eterno e injustiçado Estado do Rio de Janeiro, do povo carioca e fluminense melhorar para sempre a sua qualidade de vida.
Os jogos vão viabilizar vultosos investimentos públicos na infraestrutura da cidade, nos equipamentos e serviços públicos. Receberão grandes recursos a saúde, a educação, a segurança, os transportes, a habitação popular.
Vão cessar esses projetos burros de maquiagem da cidade, de urbanização e cimentação de favelas. Surgirão autênticos, eficazes projetos habitacionais, bairros de verdade. Obras e obras, recuperações e modernizações, reformas e ampliações, reestruturações e sistematizações, cometimentos que irão melhorar muito a vida dos cariocas e daqueles que nos visitam.
E, claro, o esporte nacional, profissional, amador, olímpico, paraolímpico, oficial e marginal, todos vão se desenvolver. Até a purrinha e o jogo do bicho. Os jogos vão atrair formidáveis investimentos privados em todas as áreas. Empregos e salários irão se multiplicar. Renda e vida para todos. Seremos campeões em tudo.
Tudo irá melhorar. Não será mais como das outras vezes, das outros milhares de outras vezes. Agora é diferente. É pra valer. Para o povo será uma beleza! Nos lares, nas ruas, nas praças, nos hospitais, nas escolas, no trabalho, no metrô, nos trens, nos ônibus, nos presídios, na praia, no mar, no ar, no céu e na terra.
Florescerá a paz, o amor, a harmonia e a fraternidade em nossos corações. Até o nosso humor carioca será mais carioca. Receberemos todos de braços abertos, desarmados. Ninguém será assaltado e torturado, prometemos.
Não irá faltar mais dipirona nos hospitais públicos. Nem esparadrapo, nem antibiótico. Nem médicos, que terão jornadas de trabalho possíveis e salários dignos. O raio X, o ultrasom e a ressonância magnética existirão. Ou não estarão mais, por meses, quebrados, como sempre. Nada mais justo, necessário, urgente e edificante que uma Olimpíada.
Moral da história: Infeliz a cidade, desgraçado o país que para ter dipirona nos seus hospitais públicos implora a Deus e ao Mundo a realização de uma Olimpíada. (E pior – cá entre nós – as Olimpíadas irão se realizar. E os hospitais vão continuar sem dipirona.)
Marcelo Câmara Jornalista, escritor, editor e consultor cultural.
Cidade do Rio de Janeiro RJ - Brasil