PESTALOZZI DE BRASÍLIA
NA CÂMARA FEDERAL
NA CÂMARA FEDERAL
A ideia é esta: Na Pestalozzi você sabe o quê e com quem está falando.
Acabo de chegar da Câmara Federal, um lugar que não visitava há mais de quatro anos. Sei lá, não me sinto à vontade por lá. Parece que estou sendo espreitado.
Sei que é a Casa do Povo, mas eu tenho que mostrar a identidade e esvaziar os bolsos para cruzar uma porta eletrônica, vigiada de perto por um agente federal...
Mas passei incólume e fui direto para o auditório Nereu Ramos.
Lá se realizou, nesta sexta-feira, 5 de setembro, por iniciativa da deputada Érika Kokay a Sessão Solene em homenagem ao 49° aniversário da Associação Pestalozzi de Brasília.
Fui chamado à mesa, fui fotografado e filmado como se de jornalista tivesse virado um parlamentar ou grande coisa. E assim é que não posso negar nada. Estive lá na Câmara dos Deputados, sim. Não há como negar.
Uma coisa tem que ser dita: a deputada Érika Kokay prestou uma homenagem muito bonita e merecida à Pestalozzi de Brasília pelos seus 49 anos e ao Movimento Pestalozziano no Brasil.
Como conselheiro da instituição fui convocado pela diretoria e dar um depoimento "como pai de um aluno". Dei. Aos trancos e barrancos. E contei um pouco do que tem sido a minha relação com o Marcelo, meu filho mais velho, a vida inteira.
Não é fácil falar da gente, dos filhos da gente, da história que a gente constrói dia a dia, momento a momento para a gente mesmo.
Sei não, mas acho que vou levar mais quatro ou cinco anos para voltar àquela Casa do Povo, onde comecei minha vida por Brasília, há 34 anos fazendo discursos para terceiros e um solene voto de pobreza.
E, porque escrever é mais fácil do que falar, vejam só o que quase não consegui dizer:
O Marcelo e Eu
Há 55 anos eu casei. Muito moço então: 20 anos de idade.
Desse casamento, com Evany que faleceu há oito anos, nasceram três filhos – Marcelo, Luciana e Caetano.
Caetano esteve pouco tempo conosco. Seu pequeno coração cresceu demais e o levou antes que fizesse dois anos.
Luciana é psicóloga e exerce hoje, a coordenação-geral da Pestalozzi Brasília.
Marcelo é aluno de lá. Ele nasceu com uma lesão cerebral. Decorrência de um parto exageradamente demorado. Havia uma greve de médicos em Pelotas, a minha pátria pequena que deixei lá no Sul, naquele dia 18 de dezembro de 1961. Desde que Evany morreu Luciana é a manamãe de Marcelo.
Em meados de 1962, antes que Marcelo completasse um ano de vida. Juscelino Kubitschek foi a Pelotas inaugurar o então monumental Hospital de Clínicas Dr. Francisco Simões. Era ao lado de nossa casa.
Minha mulher, com Celão no colo foi ver de perto o grandiloquente JK, o cativante Presidente Bossa-Nova. Ele pegou Marcelo, o ergueu nos braços, deu-lhe um beijo no rosto e disse de um jeito politicamente correto que todos ouviram:
- Serás um grande brasileiro!
E hoje, 53 anos depois, eu lhes digo: Marcelo é um grande brasileiro.
Não se alfabetizou, porque uma greve de doutores lhe tirou esta faculdade. Mas, no Brasil da Silva, isso não diz quase nada.
Ele é um grande brasileiro porque é sincero, puro, confiável, não mente, não finge, não se dobra, é reto e correto, não negocia alianças, não quer mais do que ser amigo e viver em paz e harmonia...
Marcelo é um grande brasileiro.
Mas eu preciso contar duas pequenas histórias para lhes mostrar o quanto nós, os cidadãos convencionais – de jornalistas a políticos, de não alfabetizados a doutores honoris causa - não somos ninguém para dizer quem é, ou quem vai ser um grande brasileiro...
Marcelo tinha uns 10 ou 12 anos.
Eu era presidente do Cerenepe – Centro de Reabilitação de Pelotas. Em todas as horas vagas eu era um boleiro convicto. Peladeiro, come-bola. Fui até campeão gaúcho de futsal em 1962.
Era um sábado. Logo depois do almoço. Eu lia um jornal qualquer quando Marcelo me apareceu na sala, fardado de jogador de futebol. Dos pés à cabeça.
- Ó pai,olha eu aqui,ó.
- Epa, Celão, onde é que você vai desse jeitão aí?
- Vô jogar futebol de salão no time lá escola.
- Boa filhão. Vai lá. E vê se faz um gol bonito.
Marcelo se foi. Eu terminei de ler o jornal. E a tarde também se foi. Eram quase sete horas da noite, quando Marcelo voltou pra casa.
E aí, meu filho, como é que foi o jogo?
- Foi bom... 6 a 1.
- Opa. 6 a 1?
- É... Pro time deles, pai.
- 6 a 1 e você acha que foi bom, Marcelo?
- Claro que foi, pai. Eu toquei uma vez na bola.
Nós nos abraçamos, rimos um para o outro, fomos jantar. E o tempo correu.
E aí vem a segunda história. É curtinha. (E como os senhores dizem sempre “eu já vou terminar”)...
Em 2002, o jornalista Zé Cruz, me indicou para a assessoria de imprensa do CPB – Comitê Paraolímpico Brasileiro. Fui conversar com o presidente do CPB, Vital Severino Neto, um advogado cego. Conversamos por mais de uma hora. Ele me contratou.
Ficamos acertados de que eu começaria a trabalhar já no dia seguinte. E por lá fiquei quase cinco anos, com notáveis e incontáveis lições de vida. Na saída da entrevista com Vital, ele me levou até à porta de seu gabinete e me disse:
- Então, Sérgio amanhã às 7h30 vamos tomar um café e tratar da agenda do seu primeiro dia como nosso assessor de imprensa.
- Tá bom Vital. Amanhã então às sete e meia...
- Tá OK Sérgio, Agora vá até o gabinete do Irajá... Ele é o vice-presidente do Comitê. Apresente-se para ele já como o novo jornalista da casa. Ah, sim só um detalhe...
- Pois não Vital, diga.
- Amanhã, você não precisa falar tão alto comigo. Eu sou... cego.
Saí de fininho e fui remoendo aquele mico. Bati na porta do gabinete do vice-presidente e fui entrando. Estendi a mão para cumprimentar o segundo dirigente mais importante do CPB e... Fiquei sem saber o que fazer com a mão.
Irajá era tetraplégico. Eu não sabia como cumprimentar, ou apertar a mão de um tetraplégico.
Pronto, mais uma entrada triunfal. Eu me dei conta então do quanto eu estava despreparado para lidar com uma pequena parcela dessa nação de mais de 50 milhões de pessoas com deficiência no Brasil.
No rumo de casa, eufórico pelo novo desafio profissional, eu me dei conta do que tinha feito com Marcelo há mais de trinta anos...
Quando ele se apresentou fardado de peladeiro na minha frente e dizendo que ia jogar futebol... Ele estava na verdade me convidando para vê-lo jogar. E eu não entendi.
Quando ele voltou e disse que tinha sido bom levar 6 a 1 e que tinha tocado uma vez na bola. Ele estava me dizendo que havia um tipo de futebol lá fora que ele podia jogar... E eu não entendi.
Eu perdi mais de 30 anos de parceria com o Marcelo, porque – como a maioria esmagadora dos brasileiros – eu não pensava e não agia como alguém que entendesse e respeitasse esses grandes brasileiros, muito maiores e muito melhores do que nós.
Na Pestalozzi a ideia é essa: você sabe o quê e com quem está falando. São 49 anos de dedicação à causa das pessoas com deficiência. Uma lição permanente: mais importante do que viver é preciso saber conviver.
Que se pense muito bem, que se preste muita atenção nessa proposta imediatista de inclusão pela inclusão que corre por aí.
Os inclusivistas estão chegando. Querem fazer a alquimia da inserção social de cima para baixo, como se soubessem mais que os próprios deficientes o que é melhor para o deficiente.
Do jeito que estão querendo fazer, logo o governo, seja lá qual for o governo , vai mostrar pra Deus e todo mundo que o Brasil é um país que não têm deficientes... Bem do jeito como garantem hoje que acabou a miséria no Brasil...