Por:
Carlos Eduardo Behrensdorf
Pênis
pequeno não é motivo para anular casamento
No dia
20 de junho de 2012, o portal Âmbito Jurídico veiculou a seguinte notícia, que
transcrevemos na íntegra:
“Mulher
pede indenização na justiça por ter casado com homem de pênis pequeno
KDB, 26 anos, advogada e residente no
município de Porto Grande no Amapá decidiu processar seu ex-marido por uma
questão até então inusitada na jurisprudência nacional. Ela processa ACD,
comerciante de 53 anos, por insignificância peniana.
Embora seja inédito no Brasil os
processos por insignificância peniana são bastante frequentes nos Estados
Unidos e Canadá. Esta moléstia é caracterizada por pênis que em estado de
ereção não atingem oito centímetros. A literatura médica afirma que esta
reduzida envergadura inibe drasticamente a libido feminina interferindo de
forma impactante na construção do desejo sexual.
O casal viveu por dois anos uma
relação de namoro e noivado e durante este tempo não desenvolveu relacionamento
sexual de nenhuma espécie em função da convicção religiosa de ACD. KDB hoje o
acusa de ter usado a motivação religiosa para esconder seu problema crônico. Em
depoimento a imprensa a denunciante disse que “se eu tivesse visto antes o
tamanho do ‘problema’ eu jamais teria me casado com um impotente”.
A legislação brasileira considera
erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge quando existe a “ignorância,
anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de moléstia grave”. E
justamente partindo desta premissa que a advogada pleiteia agora a anulação do
casamento e uma indenização de R$ 200 mil pelos dois anos de namoro e 11 meses
de casamento.
Nada
obstante a notícia não nos fornecer dados conclusivos, ficando a questão a
depender da análise do caso concreto pela Justiça, o fato é que o caso ganhou
as redes sociais, e, pelo ineditismo afirmado, pensamos seja interessante um
debate sobre o tema.
O
Código Civil, ao tratar da invalidade do casamento (artigos 1.548 a 1.584)
dispõe em seu art. 1.550, inciso III:
Artigo
1.550. É anulável o casamento:
(...)
III –
por vício de vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558.
O
artigo 1.556 dispõe que “o
casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos
nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro. Adiante, o art. 1.557, III, diz:
Artigo
1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
"(...) III
- a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de
moléstia grave e transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco
a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência."
Pois
bem, inicialmente cabe-nos investigar se o episódio narrado configura caso de
anulação de casamento, pois há que se determinar se o tamanho reduzido do
pênis, por si só, é suficiente a autorizar a adoção da medida anulatória
pretendida pela mulher.
Quanto
ao pedido de anulação do casamento, o inciso III, do artigo 1.557, fala em
“defeito físico irremediável”. Sendo assim, o primeiro aspecto a ser
considerado é saber se um pênis cujo tamanho não se encaixa na média da
população masculina pode ser considerado um defeito físico irremediável. O
segundo aspecto diz respeito a descobrir se o tamanho do pênis, caso isso seja
considerado um defeito, é irremediável.
Sem
pretender aprofundar o tema, pesquisando a Classificação Internacional de
Doenças (CID), utilizando o vocábulo “micropênis” — que é, aparentemente, a
“moléstia” da qual padece o ex-marido da autora da ação, o respectivo catálogo
não fornece resultados para o item pesquisado. Ao que parece, de fato não se
trata de uma doença, isto é, de uma patologia, mas sim de uma condição do pênis
humano. Essa definição pode ser encontrada em diversos sites da internet que
tratam do assunto. Por todos, confira-se: http://www.ipadiponeipod.com/a-condicao-micropenis-NzY4NDg.html.
Sem
embargo, o médico americano Brian Richards, em sua obra intitulada O Pênis (São Paulo: Editora Produtos Paradise Ltda., 1980, p. 93-103), enumera
as doenças que podem acometer o pênis humano, dividindo-as em doenças gerais e
doenças específicas. As primeiras relacionam-se aos hábitos de vida do
indivíduo, isto é, podem derivar de obesidade, alcoolismo, dependência de
outras drogas, diabetes etc; as demais têm origem no próprio órgão sexual. Ao
todo, o referido autor descreve, minuciosamente, cada uma das 25 doenças que
arrola em seu livro, sendo que o micropênis sequer é citado dentre as
patologias.
Assim,
num primeiro momento, parece-nos que a questão não envolve defeito físico, pois
a literatura médica trata essa condição como mero desvio de padrão, tendo em
vista que o tamanho normal do pênis humano varia de 5 a 10 cm quando flácido, e
de 12,5 a 17,5 cm quando ereto, sendo que um micropênis, quando flácido, mede
menos de 4 cm, e, quando ereto, não passa de 7,5 cm (Disponível em: http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?403. Acesso em 23/06/2012).
Ademais,
a pediatra Gabriela Zanola esclarece:
“Micropênis
Nesta condição, o pênis é bem
formado, mas o comprimento é inferior a uma faixa de medidas das dimensões
penianas consideradas o normal para um recém-nascido. Simplificando, um
recém-nascido a termo deve ter um pênis com comprimento de no mínimo 1,9cm. As
dimensões inferiores devem ser alvo de uma investigação do perfil hormonal,
especialmente da secreção de testosterona. A palpação dos testículos é outro
aspecto importante do exame da genitália, devido a possibilidade de haver um
distúrbio do desenvolvimento sexual. A causa mais comum do micropênis é o hipogonadismo
hipogonadotrófico (hipotalâmica/hipofisária) e pode estar no contexto de
síndromes hereditárias. O micropênis decorrente da falência testicular
geralmente é acompanhado por testículos pequenos e na maioria, criptorquídicos.
Alguns pacientes que apresentam micropênis de causa não identificada, com
dosagens hormonais normais, apresentarão virilização espontânea e crescimento
peniano adequado na puberdade. O tratamento do micropênis é a reposição
hormonal.
Em
síntese, um pênis pequeno não é considerado doença, apresentando-se como mera
diferença de tamanho, se comparado com a média da população masculina.
Em
relação ao requisito relacionado a ser um defeito irremediável, a questão
também aponta para a impossibilidade de se acolher tal argumento, tendo em
vista a Portaria 67/06,
editada pelo Ministério da Saúde (que aprovou o Protocolo clínico e diretrizes
terapêuticas - deficiência do hormônio do crescimento. Nas informações
constantes desse documento, pode ser encontrada a seguinte informação:
“3.1
Diagnóstico clínico
Os
principais achados clínicos em crianças com deficiência de GH são baixa
estatura e redução na velocidade de crescimento. A investigação para
deficiência de GH está indicada nas seguintes situações: "Sinais e
sintomas de deficiência de GH no período neonatal (hipoglicemia, icterícia
prolongada, micropênis, defeitos de linha média)”.
Além
disso, podem ser encontrados inúmeros sites da internet esclarecendo sobre os
possíveis tratamentos utilizando hormônios, cirurgias e fisioterapia para o
micropênis, dentre eles a faloplastia,
considerada simples e pouco agressiva.
Então,
segundo a literatura médica, essa condição do pênis é passível de tratamento.
Sendo
assim, aparentemente essa condição do pênis humano (micropênis), por não
configurar um defeito físico, tampouco irremediável, afasta a pretensão da
ex-esposa de anular o casamento, pois, conforme o que foi apurado acima, os
requisitos do inciso III, do art. 1.557, do CC/2002, não estariam preenchidos.
Não seria, então, a nosso ver, caso de anulação de casamento, mas de mero
divórcio.
A
notícia dá a entender que dois foram os fatos que motivaram o pedido de
anulação de casamento, cumulado com a condenação em verba indenitária, a saber:
(i) o desconhecimento da “doença” do ex-marido (motiva o pedido de anulação do
casamento); (ii) a ex-esposa ter se sentido enganada pelo ex-marido, que
escondeu dela o “problema” durante o período de namoro/noivado, bem como a
frustração sexual após o casamento (motivam o pedido de compensação por dano
moral).
Pois
bem, quanto ao primeiro motivo, já vimos que, ao menos aparentemente (pois não
conhecemos os detalhes do caso), a questão não se encaixa na hipótese prevista
pelo inciso III, do artigo 1.557, do CC/2002. Por sua vez, o segundo motivo
merece detida análise.
Discutindo
a questão com a advogada e professora de Direito Civil Jesica Lourenço (que
entende ser caso de anulação do casamento), via mensagens em uma rede social,
foram por ela tecidas as seguintes considerações:
“A análise desse caso pede uma
importante separação dentro do Direito Civil, das situações subjetivas
puramente existenciais (que parece ser o caso) das situações efetivamente
patrimoniais. Quando ingressamos na análise de situações existenciais a solução
é sempre complexa e tendente a não chegar a um equilíbrio entre os dois lados,
até mesmo porque o Código Civil de 2002, que já nasceu velho, não está
preparado para solucionar essas situações sem o viés patrimonialista. Então, é
claro que somente os contornos do caso concreto podem afirmar isso, mas pela
legislação há a anulação do casamento, mas já essa indenização parece deveras
abusiva, até mesmo porque se houve impacto à esfera psíquica, o impacto foi na
dos dois. E tem mais: aquela grande discussão que existe hoje nas relações
afetivas, se estamos nos relacionando com o sexo, com o gênero ou com a pessoa.
Há uma total inversão de valores, a exposição que o marido sofreu me parece
muito mais prejudicial do que o problema que ela alega. Além disso, agora não
mais como civilista, mas como pessoa... Se houvesse sentimento de amor aí, ela
jamais submeteria esse rapaz a isso, há coisas mais sublimes...”
É
importante atentarmo-nos para a seguinte passagem, apropriadamente abordada
pela eminente civilista: “aquela grande discussão que existe hoje nas relações
afetivas, se estamos nos relacionando com o sexo, com o gênero ou com a
pessoa...”
Vive-se
a era do chamado Direito Civil Constitucional — escola que propõe o estudo das
instituições do direito comum à luz da Constituição Federal, que é a norma de
onde as demais retiram seu fundamento de validade. Referindo-se à doutrina
atual, Flávio Tartuce e José Fernando Simão destacam o conceito de casamento,
segundo a lição de Maria Helena Diniz, que assim o define: “O casamento é o
vínculo jurídico entre o homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e
espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de
uma família” (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito de
Família, 20ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 39, apud TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil 5. Direito de
Família, 7ª ed. São Paulo: Método, 2012, pp. 35-36).
Pelo
conceito da eminente civilista, percebe-se que, modernamente, o casamento é um
complexo de relações que envolve não só a sexualidade dos cônjuges, mas também
a consecução de objetivos de caráter patrimonial, espiritual, afetivo... Em
outras palavras, não se pode olhar o casamento tão somente sob o ponto de vista
sexual.
Sendo
assim, surgem algumas indagações:
1. Será que, à luz das normas
constitucionais, o pedido de anulação, por parte da ex-esposa, não viola o
princípio da dignidade humana?
Ora,
se o casamento deve ser encarado como o conceituado por Maria Helena Diniz,
levar em conta somente o aspecto sexual, ignorando os aspectos espirituais e
afetivos, por exemplo, a nosso ver a ex-esposa está, verdadeiramente, se
lixando para os sentimentos do ex-marido que, aliás, não tem culpa alguma de
ter nascido com um pênis cujo tamanho diverge do padrão. Some-se a isso o tabu
envolvendo a virilidade masculina, cuja exposição negativa é capaz de provocar
danos indeléveis na personalidade dos homens, verdadeiramente inutilizando-os
perante a sociedade. O homem vira motivo de gozação, indubitavelmente.
Imaginemos,
agora, outra situação: caso fosse o homem descobrindo, por exemplo, que a
mulher não pode ter filhos, será que o problema dela causaria o mesmo efeito
perante a sociedade? Pensamos que não, absolutamente! Aos olhos da sociedade, e
consoante a prática cristã, uma mulher que não pode ter filhos é
verdadeiramente digna de dó; penaliza as pessoas; merece, sim, ser acolhida no
seio da sociedade. Aos olhos da sociedade, uma mulher que não pode ter filhos,
certamente não é tão “engraçado”. Já o homem, não; ele tem que ser viril a todo
custo! E se apelidassem a mulher de “árvore seca”, seria engraçado?
2. Como fica a questão do ponto de
vista religioso? O sexo baseia-se somente no coito? A relação baseia-se somente
no sexo?
Pois
bem, ambos optaram por fazer sexo somente após o casamento; estavam de pleno
acordo quanto a estes fundamentos filosóficos; decidiram pela união sem ter a
relação sexual. Como relatado, os indivíduos compartilhavam da mesma premissa
filosófico-religiosa, o que já demonstra uma relação aprofundada, ao menos se a
considerarmos objetivamente, já que a mulher concordou com o consorte em ter
relações sexuais somente após o casamento.
3. Independentemente de tudo isso,
mesmo que a mulher achasse inadmissível o fato do marido ter um pênis pequeno,
a anulação do casamento é a medida adequada?
Sobre
esse ponto, por tudo que abordamos acima quando tratamos da questão relacionada
ao micropenianismo ser ou não uma doença ou um defeito físico irremediável,
pensamos que não. A medida adequada seria o divórcio, pura e simplesmente.
Podemos até concordar que a incompatibilidade sexual é capaz de gerar a
insuportabilidade da convivência conjugal, mas para isso existe o divórcio. A
anulação é instituto destinado aos casos eleitos pelo legislador como
extremamente graves, capazes de gerar uma presunção absoluta (iure et de iure) de insuportabilidade da vida em comum.
4. Dar publicidade ao fato, a ponto de
o ex-marido ser apelidado de Toninho Anaconda, sendo ele conhecido em toda a
cidade, solucionaria o problema?
Certamente
não. Esse fato, a nosso ver, tem requintes de pura vingança. A princípio,
parece-nos que a prioridade da ex-esposa era de ordem sexual, pois, se na
relação do casal houvesse a convergência de todos aqueles aspectos descritos
por Maria Helena Diniz em seu conceito de casamento, certamente a ex-esposa
buscaria outros meios para contornar o problema, uma vez que, como dissemos, a
condição de seu ex-marido não é irremediável. Digno de nota, ainda, considerar
que, se o sexo é uma obrigação do casamento, logo há o risco de que não seja
assim tão bom para um ou ambos os nubentes. Não significa, no entanto, que
todos devam fazer sexo antes do casamento; isso vai de cada um. No entanto, já
tivemos a oportunidade de ouvir de um padre, publicamente, durante a celebração
do casamento de uma amiga, que isso não é algo recomendável (acreditem!).
Destarte, casar sem antes ter feito sexo é, sem dúvida, um risco para quem
assume essa postura.
Passando
à abordagem do suposto dano moral alegado pela ex-esposa, consta da notícia que
ela teria se sentido enganada pelo ex-marido, que escondeu dela o “problema”
durante o período de namoro/noivado, bem como a frustração sexual após o
casamento. A nosso juízo, pairam dúvidas sobre a configuração do alegado dano
moral. É que deve-se investigar a conduta do ex-marido, no sentido de esconder
dela a sua condição.
Como
dissemos, a relação entre os nubentes deveria ser pautada não só sob o ponto de
vista sexual. Havendo no casamento deveres recíprocos de índole espiritual e
afetiva, ao descobrir o problema do ex-marido, a ex-esposa deveria adotar uma
conduta de compaixão, a qual seria mais condizente com todo o amor que, ao
menos em tese, permeou a relação, a ponto de ela concordar em passar o período
de dois anos de namoro/noivado sem que o casal tivesse relações sexuais. Em
outras palavras, ela anuiu à manifestação do futuro marido, no sentido de se
abster do sexo, correndo, assim, o risco de ter uma vida sexual insatisfatória,
ainda que seu futuro marido tivesse um pênis normal. E mais: suponha-se que, ao
contrário, o pênis do futuro marido fosse demasiadamente avantajado, e
provocasse dores insuportáveis à mulher no momento da cópula. Isso é
absolutamente subjetivo! Se levarmos isso em consideração, não há que se falar
em dano moral algum sofrido pela ex-esposa, pois ter um micropênis é um fato
(um acontecimento natural), e não um ato do homem, sendo que o dever de indenizar
decorre de um ato ilícito (artigo 186 do CC/2002), isto é, de uma manifestação
decorrente da vontade humana, que venha a causar prejuízo material ou moral a
outrem.
De sua
sorte, analisando a situação do ex-marido, em nossa opinião não há dúvidas de
que ele é quem, verdadeiramente, sofreu abalo moral considerável.
Absolutamente, não havia necessidade de que a ex-esposa tornasse publico o
fato, o qual, pelo teor da notícia, repercutiu negativamente sobre a honra do
homem (honras objetiva e subjetiva), mormente por ter sido ventilado na
imprensa. Ora, se todos os elementos descritos por Maria Helena Diniz
estivessem presentes na relação entre o casal, certamente a última providência
da ex-esposa seria dar publicidade à condição do ex-marido!
Nada
obstante, na hipótese de se considerar que o ex-marido realmente causou algum
dano moral à ex-esposa, deverá ser reconhecida a concorrência de causas, tendo
em vista a conduta muito mais danosa praticada pela mulher. Nesse caso,
aplica-se o disposto no artigo 945 do CC/2002, que diz:
Artigo
945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua
indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto
com a do autor do dano.
Por
fim, o tema não se esgota aqui. Nossa intenção neste breve texto é somente
convocar os estudiosos do Direito Civil ao debate, tendo em vista o noticiado
ineditismo do caso, que não possui precedentes em nossas cortes.
Vitor Guglinskin é advogado
membro do Instituto Cultural para a Difusão do Conhecimento Jurídico - INJUR.
Larissa
Affonso Mayer é advogada.