TROTE UNIVERSITÁRIO
Nenhuma euforia será tanta e nem tão grande a ponto de jogar no lixo a dignidade de quem quer que seja.
Nos idos de 70 passei no vestibular da então Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Pelotas. Tinha já os meus bons 30 anos, era casado, pai de três filhos e já vinha cometendo jornalismo há muito tempo.
Fiquei entre os primeiros 40 colocados dentre os 100 candidatos, graças a minha tática infalível para superar provas escritas de qualquer natureza: 40% de estudo, 30% de sorte e 30% de cola.
Hoje, eu já não iria para uma prova com essa estratégia. Seriam 40% de estudo e 60% de sorte.
Não, por mais que eu tenha fastio por estudar convencionalmente, eu hoje não colaria, por essa luz que nos ilumina!
Mas isso até aqui é só perfumaria para atirar pedra nessa coisa primitiva, animalesca, deprimente e sem noção que é o trote de calouros.
Naquele tempo o trote universitário era uma coisa bem mais light, bem mais suave. E até mais inteligente. Tão inteligente quanto idiota e humilhante. Trote sempre foi besteira. Bolas, há milhares de calouros a cada semestre; há muito a comemorar, mas nada que possa extrapolar o respeito e a dignidade humana. Faculdade não é quartel; lá sim, antiguidade é posto.
E então, para não perder o fio da meada, relembro aqui que o primeiro dia de aula da nossa turma seria no Campus do Capão do Leão, cidade-satélite, hoje emancipada, distante uns poucos quilômetros do centro da cidade de Pelotas.
Havia ônibus da Faculdade para levar e trazer os estudantes, professores, funcionários. Entrei no ônibus. Quando escolhi um lugar para sentar, dentre os tantos vagos que havia naquele coletivo, um grandalhão me disse em tom de quem me dava uma ordem:
- Você não pode sentar aí.
- Oi, bom-dia; por que não?
- Esse lugar é meu.
- Por que esse lugar é seu?
- Por que você é calouro e eu sou veterano.
- Ah tá, desculpe. Então eu vou sentar... aqui mesmo.
E me acomodei serena e confortavelmente no lugar que havia escolhido por que estava vazio quando eu entrei no carro. O grandalhão não me tocou, mas me condenou ao que seria um desterro na Faculdade. Foi a minha primeira questão de direito no Direito.
- Você vai ser isolado; ninguém vai falar com você aqui - murmurou ameaçador o veterano.
- Tá bom. Pra mim isso não muda nada, eu não vim mesmo aqui para falar com vocês. Obrigado, isso era tudo que eu mais queria ouvir.
E ficou nisso. O tempo correu. Cursei Direito quase três anos. Depois de cinco semestres, optei pelo jornalismo. E foi então que, sem saber, estava fazendo meus votos de pobreza.
Antes de deixar a faculdade, fui atacante de um dos melhores times de futebol da Faculdade de Direito. Nesse time, sim, não escolhi o lugar para jogar; eles me escalaram na ponta-de-lança.
Quer dizer, o trote daquele veterano foi trote. Um trote. "Uma farsa" - como diria hoje qualquer mensaleiro. Nunca o levei a sério. E pelas amizades que fiz e que ganhei por lá, ninguém levava o tal de trote a sério.
Melhores, muito melhores que o trote, eram os embalos de sábado à noite, na Boate do Centro Acadêmico. Quanta amizade; quanta conversa jogada fora; quantas e quantas... Bolas fora. A turma me contava, às segundas-feiras, antes das aulas. Pois é.
RODAPÉ - Hoje, submete-se às humilhações, ofensas, brutalidades só quem quer passar por isso. Nenhuma euforia será tanta e nem tão grande a ponto de jogar no lixo a dignidade de quem quer que seja. Nenhum curso de nenhuma universidade valerá tanto quanto a desgraça de uma morte por intoxicação, um acidente irreparável, o estupro isolado ou coletivo de qualquer calouro. Entra nessa, quem quer. Em caso de abuso, basta chamar a polícia.