No princípio era a cana, o açúcar, o melado, a rapadura e o melaço. E, no alambique, destilou-se o mosto fermentado. E nasceu o vinho de mel de cana, a aguardente da terra, vinho da terra, jeribita da terra. A excelência foi chamada de paraty, um destilado superior e mais caro, feito na cidade do mesmo nome. Finalmente Cachaça, do espanhol cachaza, bagaceira popular na Península Ibérica. Depois, pinga, cana, caninha.
Bebida dos mestiços, negros e índios, dos brancos, dos primeiros brasileiros. Bebida do povo. Farta e barata. Libertária, democrática. “Alimento”, oferenda, estimulante, moeda, mercadoria, meio de escambo, cobiçado butim, produto de exportação – a Cachaça, nos seus engenhos, explora o território, coloniza, conquista, finca a cruz, marca fronteiras, funda vilas, sustenta ciclos econômicos, umedece toda a nossa História, os caminhos e as lutas do Povo Brasileiro.
Transforma-se em símbolo da Independência, da Soberania, da Nacionalidade. Encharca a Cultura Nacional, o sonho, o culto, a mesa, a festa. Inebria a música, o canto, a dança, o drama, o rito. Conspira, celebra, motiva, comemora, cura, consola, embriaga. É tema, motor, elemento, moldura, ornamento.
Perseguida, proibida e contrabandeada, discriminada e incriminada – a Cachaça resistiu a tudo, venceu a todos. Foram 124 anos de proibição legal da produção, comércio e consumo da cachaça: de 1635 a 1759. Paulista, inventada em São Vicente, junto com o Brasil, ela está completando 475 anos de vida. A sua alma é a mesma do Povo Brasileiro: feita de suor, sonho, alegria, mística, sensualidade e beleza. Cruzou regimes políticos e sistemas de governo, driblou a intolerância, o medo e a censura. Ultrapassou os planos econômicos, disputou mercados, ganhou devotos. Impôs-se pura, verdadeira, límpida, transparente, solar, com o seu telúrico e tropical aroma, a sua deliciosa e sensual ardência. “Descer redondo” não quer
Quase tudo que se encontra na mídia, inclusive na Internet, e nas prateleiras das livrarias, sobre Cachaça é errôneo, falso ou fictício. Pululam especialistas de ocasião, bem e mal intencionados, achólogos, “profundos conhecedores” de alguns meses, oportunistas incipientes, construtores de mosaicos com saberes alheios, picaretas, comerciantes, criminosos com vários perfis. A grande maioria, além de não deter cultura ou erudição sobre a matéria, não exibe nenhuma vivência ou convivência no universo sócio-antropológico, poético e econômico da Cachaça.
Vinte e cinco mil produtores fazem 300 milhões de litros de Cachaça artesanal, destilada em alambiques, em bateladas, seguindo um regime e um tempo de produção no ritmo da vida, onde os processos e técnicas são naturais. Uma tecnologia secular, aliada à sensibilidade, à vocação e ao talento, determinam a qualidade, rumo à excelência sensorial. Outras 5 mil empresas, com equipamentos automatizados, fabricam 1 bilhão de litros de Cachaça industrial, em destiladores contínuos, de coluna, milhares de litros por minuto, com controle e intervenção sobre a estrutura físico-químico da bebida, visando à padronização.
Cachaça é a bebida que pinga na ponta do alambique, branca, nova e fresca, no máximo descansada em madeira quase-neutra, Cachaça com cheiro de cana, somente cana, e nada mais, lembrando rapadura e melado. Cachaça é a aguardente de cana-de-açúcar nova, branca e fresca. Cachaça envelhecida não é Cachaça. Cachaça envelhecida é Cachaça envelhecida, uma outra bebida. Ela foi alterada nas suas características organolépticas, sensoriais, pela madeira, que temperou a sua cor, o aroma e o sabor. Mas a sua alma não pode ser violentada, corrompida a sua natureza, estuprada na sua essência, que é de cana, cana e cana, elemento que deve continuar prevalecendo.
A Cachaça reina como nome típico e exclusivo da bebida nacional, única, feita no Brasil, com graduação alcoólica de 38 a 48 por cento e características sensoriais peculiaríssimas. Uma moderna, dinâmica e rigorosa legislação procura garantir a identidade, o caráter e o padrão da Cachaça nos mercados interno e internacional. A produção anual é de 1,3 bilhão, gerando 900 mil empregos e 600 milhões de dólares. 125 mil hectares de lavouras de cana-de-açúcar abastecem milhares de destilarias e engenhos. Exportamos menos de 1%, 12 milhões de litros. São Paulo é o maior produtor, Minas Gerais o maior fabricante artesanal. Paraty, o centro de excelência, que transmite alquimia – ciência e arte – entre gerações há mais de 400 anos, fabricando a melhor Cachaça do mundo. Todos os Estados produzem Cachaça. 6 mil marcas estão num mercado com 900 mil pontos de venda.
Apenas meia dúzia de marcas de Cachaça tem excelência sensorial, qualidade sensorial superior, virtudes sensoriais quanto à cor e transparência, ao aroma, ao sabor e digestibilidade. Ou seja: é incolor, translúcida; exala aroma agradável, sedutor e único de cana (de rapadura, melado); oferece sabor ardente, sensual, prazeroso, delicioso, forte, rústico; apresenta ingestão gostosa, agradável, macia. Cachaça e Cachaça Envelhecida não oferecem buquê, são bebidas monoaromáticas. Buquê é a reunião de várias flores, de vários perfumes. Igualmente, menos de dez marcas de Cachaça Envelhecida possuem excelência sensorial: processo de envelhecimento correto, honesto, em madeira e ambiente apropriados, por tempo legal e recomendado, daí resultando cor compatível, aroma e sabor prevalecentes de cana (de rapadura, melado), com algum e leve tempero da madeira escolhida. Portanto, na Cachaça Envelhecida, não teremos um buquê, mas, no máximo, um ramalhete.
“Descer redondo” ou “descer sem queimar” não significa coisa alguma, não é crivo sensorial. Veneno de rato e formicida também descem redondos. E matam. Também “qualidade química”, estar “de acordo com a lei” não quer dizer coisa alguma em termos de excelência sensorial. É como político ser honesto. Não se trata de uma virtude, mas uma normalidade, uma obrigação. Cachaça não é uma bebida nauseabunda, vomitativa, adversárias dos sentidos, inimiga do estômago e do fígado, para ser apenas “suportável”, “tolerável”. Cachaça é uma forte e deliciosa bebida. Um espírito brasileiro, de caráter e sensualidade.
Com aroma fascinante, sabor rústico, a Cachaça de excelência exibe virtudes insuperáveis. Nenhum destilado do mundo possui a exuberância sensorial da Cachaça. Pura ou como base fundamental e insubstituível na Caipirinha, nas batidas e drinques – a Cachaça é como uma grande paixão: forte, poderosa, absoluta, devastadora. E, ao mesmo tempo, bem-aventurada, santa, benfazeja, necessária, prazerosa.
Genuinamente brasileira, é a segunda bebida mais consumida no País, o primeiro destilado. Cada brasileiro bebe 11 litros de Cachaça por ano. Uma população, na sua imensa maioria pobre, urbana e rural, consome 900 milhões de litros. Quase que exclusivamente pinga ruim, sem nenhuma qualidade sensorial, todas as industriais e quase todas as artesanais. Ou pingas apenas bebíveis, medianas no sabor, que “dão p’ra tomar”. A classe média e as elites, que sempre beberam Cachaça com pudor e eventualmente, começam a descobrir a Cachaça, o que ela tem a ver com a nossa identidade. Mas, geralmente, acompanham a mídia, superficial e apressada, e a propaganda, comercial e enganosa.
Procure conhecer a natureza, a história, a realidade da nossa Cachaça. Busque saber e sabor: se informe sobre os fundamentos e as características de uma Cachaça com excelência sensorial. Só se ama e se deseja o que se conhece. As maiores dissimulações do mercado para enganar os consumidores são embalagens luxuosas e preços altos. A maior mentira é anunciar longos períodos de “envelhecimento”. Nenhuma pinga com excelência sensorial tem embalagem de luxo, custa caro ou tem mais de quatro anos de verdadeiro envelhecimento. Neste último caso, compra-se “pingas de pau”, loções de barba, extratos de madeiras fortes, intensamente odoríferas – tudo menos uma Cachaça Envelhecida, saborosa, suave. Cachaça alterada pela madeira, sim, mas ainda Cachaça. Íntegra, plena. O substantivo “cachaça” apenas modificado pelo adjetivo “envelhecida”.
Neste final de ano, apesar do Lula, pequeno, tonto e chulo e do seu governo corrupto, nulo e auto-reprodutivo; apesar dos políticos promíscuos e pútridos; apesar da justiça brasileira (com letra minúscula); apesar da nossa imprensa quase toda velhaca; do nosso jornalismo quase sempre 4C (covarde, canalha, cínica e calhorda), apesar da televisão pornográfica – restam-nos Deus e a fé, a razão e o sonho, o bem e o bom, a arte e o belo. Brinde o vigor e o sucesso da Cachaça, um dos mais importantes produtos da nossa economia, uma das mais belas e caras expressões da Cultura Brasileira, um símbolo da brasilidade, que, no mundo, representa a nossa alma, o talento, a arte e a alegria da nossa Gente.
Deguste afetuosamente.
É simples como viver e amar.
E só se aprende fazendo.
Saúde!
(*) Cachaçólogo, autor dos livros: Cachaça – Prazer Brasileiro e
Cachaças bebendo e aprendendo – Guia prático de degustação, ambos da Mauad Editora.
Pingófilo e degustador profissional por mais de cinqüenta anos,
criador das normas e critérios sensoriais para degustação de cachaças.
(**) Versão ampliada e atualizada de texto publicado originalmente como abertura da edição nº 100, do Caderno Paladar, Especial sobre Cachaça, do jornal Estado de São Paulo, de 16.8.2007.
RANKING MARCELO CÂMARA
Cachaças
1º lugar – Coqueiro (tipos: Tradicional, Azulada e Prata), de Paraty, RJ 2º lugar – Corisco (Branca), de Paraty, RJ 3º lugar – Samanaú, de Caicó, RN 4º lugar – Aroeirinha, de Porto Firme, MG
Cachaças Envelhecidas
1º lugar – Coqueiro (tipos: Envelhecida e Ouro), de Paraty, RJ 2º lugar – Corisco (Envelhecida), de Paraty, RJ 3º lugar – Velha Aroeira, de Porto Firme, MG 4º lugar – SalvaGerais (tipos: Prata, Ouro e Diamante), de João Pinheiro, MG 5º lugar – Tabaroa, de Bichinho, MG 6º lugar – Biquinha, de Coronel Murta, MG
Receita: Caipirinha
A única e a verdadeira.
O autêntico drinque brasileiro.
Ingredientes
1 limão de casca fina grande ou dois pequenos / açúcar / duas doses de cachaça artesanal de qualidade superior, branca, nova e fresca gelo picado ou em pequenos cubos.
Modo de fazer (dose mínima)
Retire as pontas do limão. Corte o limão em rodelas ou em várias partes, a partir das quatro obtidas com o corte em “x” do limão em pé. Em uma vasilha pequena ou copo grosso, coloque um pouco de cachaça, amasse as rodelas ou os pedaços de limão com um soquete de madeira para extrair o suco e o sumo da casca do limão. Despeje tudo no copo no qual será servida a Caipirinha, complete com cachaça, acrescente açúcar a gosto ou mel ou adoçante e complete com gelo. Decore o copo com uma fatia de limão cravada na sua borda.
Saúde! Viva o Brasil! Viva o Povo Brasileiro!
Receita de Marcelo Câmara que adverte:
– Qualquer outro drinque feito sem qualquer um destes ingredientes, ou não preparado rigorosamente deste modo, não pode ser chamado de CAIPIRINHA. Se for usado outro destilado ou fermentado ou outra fruta qualquer, não é CAIPIRINHA, nem pode ter um nome que se inicie com a raiz “CAIPI”. Portanto, caipirosca, caipirinha de vodca, caipirinha de gim, caipiríssima, caipirinha de rum, caipirinha de tequila, caipirinha de saquê, caipirinha de vinho branco são denominações impróprias, barbaridades, aberrações e constituem agressões à Cultura Brasileira. Seria o mesmo que imaginar uma feijoada sem feijão, uma pizza sem massa, um cuba-libre sem rum, um uísque sauer sem uísque etc.
O decreto nº 4.851, de 2.10.2003 define:
Caipirinha é a bebida típica brasileira, com graduação alcoólica de quinze a trinta e seis por cento em volume, a vinte graus Celsius, obtida exclusivamente com Cachaça, acrescida de limão e açúcar. (Art. 1º, § 4º).