O medo

TENHA MEDO DO QUE O GOVERNO PODE FAZER COM VOCÊ. NO BRASIL GOVERNAR É SATISFAZER NECESSIDADES FISIOLÓGICAS.

5 de jan. de 2010

Câmara & Cascudos

ANGRA:
A CADA VERÃO, MAIS HOMICÍDIOS
COMETIDOS PELOS GOVERNANTES


Marcelo Câmara

A primeira página da edição do Jornal do Brasil, de 3 de março de 1975, trazia os seguintes título e texto, uma “chamada” para uma matéria do jovem repórter Marcelo Câmara:

Contenção de
encosta atrasa
a Rio–Santos


Problemas de ordem geológica, co-
mo a necessidade da construção de
grandes muros para a contenção das
encostas, uma orografia acidentada e
um terreno quaternário em processo
de decomposição, condições não pre-
vistas pelas firmas construtoras es-
tão atrasando a conclusão da Rodo-
via BR-101, Rio–Santos;

Os engenheiros argumentam que
o terreno úmido conhecido como talus
provoca um perigoso processo geoló-
gico: gigantescas pedras se deslocam
sobre blocos-matrizes, invadindo o lei-
to da estrada. No trecho Rio–Angra
dos Reis, túneis, pontes e viadutos, es-
tão ainda em fase de acabamento, não
se podendo prever, com exatidão, a
data de sua conclusão. (Página 11)

A pauta foi sugerida pelo próprio Marcelo Câmara, um angrense, à chefia de reportagem do jornal. “E deu primeira página”, vibrou-se. Na página 11, uma grande matéria, não assinada, com foto, também não assinada, do já veterano e competentíssimo Ronaldo Theobald.

Note-se que no final da “chamada” está, indiretamente, o resumo da minha mensagem jornalística: A Rio–Santos jamais será inaugurada. E não foi. Até hoje.

E por quê? Porque é uma estrada burra, irracional, criminosa. Destruiu cerca de cem praias, eliminou paisagens, destruiu fauna e flora terrestre e marinha, agrediu, tangeu ou deslocou sítios inteiros da Mata Atlântica e de plantações.

Uma grande rodovia, de alta velocidade, destruidora, avassaladora, num litoral encantado, recortado de baías, enseadas, angras e sacos. Povoada de praias, natureza tropical, rica, plural, exuberante. Nunca a estrada está livre, limpa, desimpedida.

A estrada ideal, adequada, seria de baixa-velocidade, economicamente inteligente, acompanhando o recorte, o desenho do litoral, cheia de belvederes, de “paradas” para o visitante, o viajante, o turista ver, vislumbrar, sentir, parar, extasiar-se, fotografar, filmar, dormir, comprar, gastar, comer, beber, consumir, amar, voltar.

A cada chuva, uma encosta, uma barreira cai, despenca, toma conta da estrada. A autoridade, se fosse inaugurá-la algum dia, correria o risco de morrer soterrada. Com a sua comitiva, é claro. Por isto, ela é a única grande estrada federal que nunca foi inaugurada. Nem será.

O terreno da Serra do Mar, de Mangaratiba a São Vicente, é, como escrevi, um terreno quaternário, em decomposição, com muita água, numa orografia muito acidentada, repleta de pedras imensas que se deslocam sobre blocos-matrizes.

Na Costa Verde, em Angra, Paraty e Mangaratiba, as montanhas descem íngremes até o mar, as matas beijam o mar. Por isto, Costa Verde. A Mata Atlântica refletida no azul do mar. Em Angra, você pode tomar banho de cachoeira, banhar-se na água doce, dentro do mar. Na canoa. As montanhas da Costa Verde mergulham no mar. Elas estão sempre descendo, mergulhando no mar.

Terra, mata e... os bananais. A bananeira, cultura perfeita e adequada à terra úmida e molhada, típica da região, afofa a terra, parece que encharca mais o terreno, umedece-o ainda mais, tornando-o fofo, areado, frágil, solto. E, em Angra, do Rio a Santos, parece que a banana é nativa.

Os bananais têm séculos, se reproduzem naturalmente, como mato, relva, capim. Lúcio Costa escreveu que “Paraty” – cidade construída no fundo da baía, na planície, que mesmo não sofrendo com os desmoronamentos – “é a cidade onde os caminhos do mar e os caminhos da terra se encontram, melhor, se entrosam”.

De novembro a abril, chove quase todos os dias entre Rio e Santos. Quase sempre, intensamente. Todos nós, caiçaras, mangaratibenses, angrenses, paratyenses, sabemos disto. Temos consciência dos perigos das chuvas, das marés, do vento sudoeste impiedoso, das mudanças bruscas no céu e na temperatura. As autoridades públicas também sabem. Ou fingem que não sabem.

Nós, angrenses (eu, às vésperas dos sessenta anos), cada um de nós, vivemos desde a infância, os horrores dos deslizamentos de terras nos morros de Angra dos Reis. Principalmente, e sempre, nos verões.

Na cidade e na roça, nos distritos, nas praias, nas ilhas, nos costões, nas serras. Sempre as vítimas é o povo mais pobre, que não tem casa, não possui teto, que vive nos morros, pendurados, na periferia.

Todo angrense, do indigente ao milionário, do trabalhador ao prefeito, sabe que, em Angra, naquela região, não se pode construir na encosta ou no sopé dos morros. Nem desviar riachos, mexer em águas. Não se movimenta terras sem uma reação imediata, feroz, da Natureza.

Construir, com zelo e sob risco, somente em extensos platôs, em planaltos, tabuleiros. Ou em boas várzeas, planícies litorâneas. Mesmo sem construir, sem desviar córregos, escavar solos, os morros, as serras, as encostas desabam com as chuvas.

Desde criança, assisto a favelização constante de Angra dos Reis e as tragédias na minha terra. São milhares de vidas levadas nas enxurradas de lama e pedra. Famílias inteiras, idosos, crianças, jovens. Ninguém é responsabilizado.

E continuam a construir, a se conceder “habite-ses” nos morros da Carioca, do Santo Antônio, do Carmo, do São Bento, da Caixa d’Água, do Abel, da Fortaleza, nos quinze morros da cidade. Também na Ilha Grande, na Gipóia, nas outras ilhas, nas encostas. E todo o ano, é a mesma cantilena, os falsos espantos.

Promessas, promessas, promessas. Lamentações, decretação de luto e de estado de emergência e de calamidade pública, “as providências serão tomadas”, blá, blá, blá... Onde está o Plano Diretor de Angra dos Reis? A defesa civil estadual e municipal? E a fiscalização predial e ambiental? E o Projeto Turis, que disciplinou, na década de 1970, a ocupação do solo, a exploração sócio-econômica no litoral do Rio a Santos, uma das poucas realizações, sérias e positivas, dos governos militares? Nos arquivos, no lixo, na memória dos que tiveram o privilégio de conhecê-lo antes de ser abandonado.

Onde estão os programas habitacionais, a infraestrutura urbana e rural, as moradias decentes, em locais seguros, minimamente dignas para o povo? Nada. Temos, sim, a cimentação de favelas, as pinturas das fachadas e dos barracos, a maquiagem falsa e barata. Os PACs eleitoreiros, barulhentos, caros, custosos e fraudulentos.

Os homicídios ocorridos em Angra dos Reis foram cometidos pelas autoridades públicas: União, Estado e Município. E os três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, os dois primeiros nos seus três níveis: federal, estadual e municipal. Desrespeito, atentado, morte à vida humana, crime contra a sociedade. Omissão, ação política criminosa, irresponsabilidade, procrastinação, corrupção, cegueira administrativa, genocídio continuado. Crime de lesa-humanidade.

Os governantes, do País, do Estado e do Município, atuais e anteriores, são os verdadeiros culpados pelas mortes, pelos homicídios, pelos cadáveres tirados da lama, por entre as pedras de Angra dos Reis.

“E ninguém foi preso” – a frase mais ouvida no País, desde a instalação da República.

República que somos todos nós, que deveria ser de todos e por todos, como sonhou e lutou o maior dos republicanos, o angrense Lopes Trovão.